Redes de desinformação têm que ser investigadas, defende ex-secretária do TSE

A advogada Aline Osorio, que foi secretária-geral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) até o começo deste ano, defendeu que órgãos de investigação apurem as redes de distribuição de desinformação. Em entrevista à coluna, Osorio afirmou que as decisões judiciais não são capazes de vencer a desinformação, mas disse acreditar que a Justiça Eleitoral tem encontrado ferramentas para lidar com o fenômeno.

“As estruturas de desinformação se valem da prática de vários crimes, como falsidade ideológica, compra de chips em larga escala, uma série de violações à legislação eleitoral. Tudo isso pode ser investigado e tratado para garantir uma resposta sistêmica e mais efetiva à desinformação”, afirmou a advogada, acrescentando que vencer a desinformação com decisão judicial é “próximo a enxugar gelo”.

Osorio, que é assessora de Luís Roberto Barroso no STF e conduziu o Programa de Enfrentamento à Desinformação do TSE durante a gestão do ministro, disse também que a corte pediu às plataformas de redes sociais que planejassem o que fariam em caso de um candidato não aceitar o resultado da eleição. O cenário que ganhou força desde a invasão do Congresso americano insuflada por Donald Trump no ano passado.

“A liberdade de expressão caminha numa corda bamba na seara eleitoral, equilibrando-se entre esse antigo fantasma da censura e uma nova assombração, que é o cenário da desinformação. Estamos num momento muito delicado”, disse a advogada, que recentemente lançou a nova edição da obra “Direito eleitoral e liberdade de expressão”, pela editora Fórum.

Nesta eleição, o TSE vem sendo mais incisivo ao coibir a desinformação. O tribunal tem novos instrumentos para conter também o ataque às urnas?
Lidar com notícias falsas durante eleições é algo que sempre existiu. Em 2018, a Justiça Eleitoral se deparou com dois fenômenos novos: o disparo em massa de desinformação e o ataque ao próprio processo eleitoral, ao TSE, ministros e servidores. Isso trouxe consequências muito negativas, que reduziram a participação política e a confiança no resultado, até o pior cenário, que é a não aceitação dos resultados da eleição. A partir da eleição municipal de 2020, o TSE começou a construir um arsenal para lidar com a desinformação. Para as eleições de 2022, a corte criou um dispositivo, o artigo 9-A, sobre propaganda, que trata de proteger a integridade do processo eleitoral. Isso permite a tomada de providências para interromper a conduta irregular. Temos três precedentes principais sobre desinformação. Primeiro, a cassação do deputado Fernando Francischini, que fez uma live alegando falsamente fraude. Foi um recado aos candidatos de que a tentativa de usar o discurso de fraude caracteriza abuso de poder midiático. O segundo foi no caso de disparo em massa, em uma ação contra a chapa Bolsonaro-Mourão. O TSE firmou a tese de que disparos em massa podem gerar a cassação. O terceiro caso foi a desmonetização de perfis envolvidos em ataques ao processo eleitoral. A desmonetização, determinada pelo ministro Luis Felipe Salomão como corregedor eleitoral, foi de todos esses perfis, não apenas de conteúdos isolados. E o TSE também tem instrumentos administrativos, como o programa de enfrentamento à desinformação. Hoje já são mais de cem parcerias com plataformas e entidades.

Por outro lado, o tribunal também tem recebido críticas pelo volume de desinformação circulando. Não falta que órgãos como MPFMPE e PF investiguem as redes de distribuição de desinformação?
Certamente uma atribuição do Ministério Público Eleitoral é investigar a existência de estruturas de desinformação. É importante entender que essas estruturas se valem da prática de vários crimes, como falsidade ideológica, compra de chips em larga escala, uma série de violações à legislação eleitoral. Tudo isso pode ser investigado e tratado para garantir uma resposta sistêmica e mais efetiva à desinformação, que não seja o mero pedido de retirada de conteúdo. O combate à desinformação mais efetivo se volta contra os comportamentos inautênticos, buscando seguir o caminho do dinheiro, para identificar essas estruturas massivas de disseminação de desinformação em larga escala. Seguir o caminho do dinheiro está no âmbito dos inquéritos relatados pelo ministro Alexandre de Moraes, que tem atuado nessa linha de buscar os financiadores e as estruturas montadas para disseminar desinformação em escala industrial. Os resultados ainda são parciais e vêm sendo divulgados. Na esfera jurisdicional, o TSE age por provocação. Não há uma legitimidade para que o TSE determine, de ofício, a remoção de conteúdo na internet e passe a policiar o fluxo de informação digital. Há críticas injustas sobre a insuficiência da atuação do TSE.

Há poucos meses, o TSE nem sequer conseguia se comunicar com o Telegram. Hoje já há um canal aberto com as plataformas de redes sociais?
Sim, mas isso não significa que há uma total clareza em relação às respostas que cada plataforma vai adotar. Desde 2020, no Programa de Enfrentamento à Desinformação, o tribunal defendeu que as plataformas tivessem políticas de moderação de conteúdo claras e acessíveis ao público brasileiro. Hoje a Justiça Eleitoral tem um sistema de alertas de desinformação, que são enviados às plataformas. Mas não há nenhum tipo de controle, e não deve haver, sobre qual vai ser a ação adotada por cada plataforma. Sobre a não aceitação de resultados, o TSE tentou instar as plataformas a refletir sobre o que cada uma faria nesse cenário, que não é hipotético porque aconteceu nos Estados Unidos. Muitos acreditam que as plataformas agiram tardiamente e poderiam ter prevenido episódios como a invasão ao Capitólio.

Quais são os caminhos jurídicos para punir a não aceitação do resultado da eleição?
O artigo 9-A é um caminho, que permite a ordem para interromper imediatamente o crime. Ele foi usado de forma mais evidente pela primeira vez recentemente, no caso do discurso do presidente a diplomatas estrangeiros. E isso pode ser tratado também por meio de outros crimes, inclusive da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, se considerarmos que essas tentativas de não aceitação do resultado vêm acompanhadas também de alguma incitação à violência ou à tentativa de subverter o Estado Democrático de Direito. Há também a atuação junto às plataformas que já têm políticas definidas para a suspensão de contas que declarem a não aceitação dos resultados. Há uma série de possibilidades. Em último caso, o crime de abolição do Estado democrático de Direito.

Vez ou outra, políticos minimizam discursos de ódio sob o escudo da liberdade de expressão. Como traçar essa linha?
Tradicionalmente, os discursos de ódio, tal como reconhecidos em instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, se limitam a discursos que se voltem contra grupos vulnerabilizados. Há um caso interessante no TSE de um processo que foi movido pelo atual senador eleito Flávio Dino. Ele foi alvo de xingamentos na internet. O TSE enquadrou essas ofensas como discurso de ódio. Mas o voto vencido do ministro Luís Roberto Barroso apontou que, embora fosse um discurso odioso, não foi caracterizado como um discurso de ódio, porque Dino não foi atingido como membro de um grupo vulnerável. Para não banalizar as restrições indevidas à liberdade de expressão, é importante diferenciar o discurso de ódio do discurso feito com ódio. Em caso de incitação à violência, você pode ter outros tipos de saída para dar uma resposta àquela ação.

Qual seu prognóstico sobre o combate às fake news nas eleições?
Não sou otimista no sentido de achar que nós vencemos o desafio, mas tenho a certeza e a confiança de que o instrumental necessário para lidar com esse desafio está sendo desenvolvido. É no vácuo da informação verdadeira que a desinformação encontra espaço para se alastrar. Se há mecanismos de fazer a informação chegar às pessoas, se cria uma forma de imunização contra o vírus das informações fraudulentas contra o processo eleitoral. Em 2018, o direito eleitoral convivia com o fantasma da censura, de um passado censório e autoritário que teimava em persistir. Naquela eleição, vimos juízes eleitorais determinarem a invasão de universidades e o fim de aulas que manifestavam apreço à democracia e rejeição ao fascismo. Essa tendência autoritária continua presente em decisões judiciais que vão além do que seria necessário para tutelar a honra dos candidatos. A Justiça Eleitoral muitas vezes entende como ilegítima uma ofensa natural do debate público. Os candidatos e autoridades em geral devem ter uma pele mais espessa para aguentar críticas. A livre expressão é a pedra angular de toda a sociedade democrática. Atualmente a liberdade de expressão caminha numa corda bamba na seara eleitoral, equilibrando-se entre esse antigo fantasma da censura e uma nova assombração, que é o cenário da desinformação. Estamos num momento muito delicado.

“Essa tendência autoritária continua presente em decisões judiciais que vão além do que seria necessário para tutelar a honra dos candidatos. A Justiça Eleitoral muitas vezes entende como ilegítima uma ofensa natural do debate público”

A mera dúvida sobre o processo de votação é legítima, certo? Do contrário, o sistema eleitoral teria o status de inquestionável.
Exato. A discussão sobre o melhor sistema de votação tem de estar aberta em qualquer democracia. Não pode ser um tabu. Outra coisa é você dizer de forma infundada que houve fraude. A liberdade de expressão é chamada de direito preferencial, ou seja, precisa ter um peso maior em colisão com outros direitos. Isso acontece porque a liberdade de expressão é essencial à democracia, à busca da verdade e à dignidade das pessoas. Discursos de ódio, incitação à violência e ao extremismo violento são limites à liberdade de expressão, como está claro no direito internacional.

Como avalia o entendimento de que a mídia tradicional também pode cometer desinformação?
Nenhum veículo de imprensa está imune à possibilidade de errar, de divulgar fatos sabidamente inverídicos. Quando falamos na desinformação que tem um propósito objetivo, pensamos numa produção e divulgação massiva de conteúdos manipulados, perigosos, que têm objetivos de causar dano. Esse formato pode ocorrer também em veículos de imprensa que estejam a serviço de alguma causa política. Não são todos os veículos de imprensa que se pautam pelos graus de responsabilidade jornalística, embora os veículos tradicionais tenham esse filtro e essa atuação ética. A internet descentraliza a produção de informação e gera também a criação de vários sites de informação de qualidade duvidosa e que não passam por esses padrões jornalísticos mais rigorosos.

O ponto central seria o dolo, a intenção de quem produziu a informação falsa?
Sim. Seria um “dolo [intenção] ou uma manifesta negligência em relação à verdade”, como decidiu a Suprema Corte norte-americana em casos de divulgação de notícias com fatos sabidamente inverídicos. O caso mais emblemático foi quando um comissário de segurança pública promoveu uma ação contra o New York Times porque tinha um anúncio do movimento de direitos civis que tratava da ação policial contra Martin Luther King e tinha alguns erros de fato, por exemplo quantas vezes Luther King havia sido preso. O jornal foi condenado a indenizar esse comissário, afirmando que aquela era uma publicidade difamatória.

Quando não houver dolo ou má-fé, o melhor caminho seria a correção ou a remoção do conteúdo?
Há algumas decisões que determinaram a remoção de conteúdos de veículos de imprensa tradicionais. No entanto, nesses casos o melhor caminho seria não propriamente a remoção do conteúdo, mas outros tipos de ação que aumentam o componente informacional do debate. Por exemplo: a correção da informação e o direito de resposta de quem foi atingido pela informação inverídica. O erro é natural da atividade jornalística, que tem um timing específico que não combina com a necessidade de aguardar a confirmação total de uma determinada informação. Quando há a divulgação de uma investigação sobre corrupção, por exemplo. Se a imprensa tivesse que aguardar o julgamento de todo o caso em todas as instâncias, o trabalho da imprensa seria inviabilizado. Salvo quando esses veículos, algumas novas mídias, fazem parte desse tipo de desinformação sistêmica, nos casos ordinários os erros jornalísticos são corrigidos pelas vias regulares e a solução a ser preferida em prol da liberdade de expressão é o direito de retificação e de direito de resposta.

Em que pé está a Justiça Eleitoral no combate à desinformação?
Hoje, a Justiça Eleitoral compreende muito bem o que é o fenômeno da desinformação e o seu papel enquanto organizador das eleições. Entende que é preciso combater a desinformação, especialmente a partir da garantia de um ambiente informacional mais saudável, para que o direito de voto seja livre, sobretudo dando mais informação sobre o funcionamento do processo eleitoral. O grande desafio, na esfera das decisões judiciais, é como alcançar um meio termo para não se imiscuir excessivamente na disputa política entre os candidatos, de modo que o TSE não seja percebido como um ator político. Muitas vezes o melhor caminho é minimalista. O problema é que não é possível vencer esse tipo de desinformação com decisão judicial. Embora as decisões judiciais possam ter um efeito pedagógico, elas não conseguem lidar com a grande disseminação desse tipo de conteúdo que se volta contra candidatos. É algo próximo a enxugar gelo, uma vez que mesmo em uma decisão de remoção o conteúdo enganoso não é excluído de todos os celulares que o receberam. A raiz do problema não é atingida. Também há uma preocupação em não criar um efeito censório do debate ou que as decisões judiciais sejam mais um elemento do Fla x Flu eleitoral. O debate precisa de conteúdo não só propositivo, mas de crítica aos adversários, ainda que se possa discutir se o tom é adequado. Alguma dose de crítica é absolutamente essencial, até para entendermos o que está em jogo em cada eleição.

Como vê o papel dos influenciadores digitais nas eleições?
Há uma série de influenciadores digitais definindo o seu lado na disputa. Nos Estados Unidos, as campanhas podem pagá-los para que divulguem determinados candidatos. No Brasil, isso é vedado, mas existe uma dúvida se o melhor caminho é a proibição. Tal como no impulsionamento em redes sociais, o influenciador poderia esclarecer que trata-se de um conteúdo patrocinado. Seria um reconhecimento de que o uso de influenciadores é um fenômeno de propaganda atual. Não tem por que tirar isso da política. É preciso regulamentar, para que isso não seja feito debaixo dos panos, como já vimos em alguns casos no Brasil.

 

Por: Metrópoles

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